quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Manual Prático para a Vida e Afins

Tarcisio Pequeno
(ex)Articulista do Vida & Arte


Alain de Botton escreve uns livros bacanas, onde combina literatura com algo, senão a própria, mui cerca da filosofia. Caiu-me à mão um seu livro em que se anuncia, desde o título, a forma como Proust pode nos mudar a vida. Dele retiro o mote e a primeira frase: “Há poucas coisas às quais os seres humanos se dedicam com maior afinco (e sucesso, eu acrescentaria) que à infelicidade” – essa a frase. O mote está nos títulos. No do artigo que vos fala, que aliás já estava em disco do Ed Mota, e no do livro mesmo. Não duvido que a literatura possa mudar a vida, mas para esse afã, por força de afinidade, de alma, talvez, a Proust, prefiro Pessoa. Ao tempo perdido, e à sua busca, o desassossego. O livro e sua escrita. Nele, quem o procura, pode encontrar um verdadeiro manual de conselhos e observações úteis a neutralizar, no viver, essa natural inclinação ao infelicitamento. É composto de observações e anotações interminadas, refinadas e destiladas ao longo de praticamente toda a vida do autor. Obra à qual se dedicava, segundo ele mesmo, quando a mais nada conseguia. Um maduro fruto da depressão, do tédio, do desalento e da solidão. Um fruto, portanto, da combinação de ingredientes férteis para a produção da sabedoria, quando reunidos no solo de uma alma a ela inclinada. Esse artigo é, assim, uma colagem das colagens de outrem. É também um jogo de deslocamentos.

Começando pelo deslocar-se. Viajar é a melhor coisa do mundo. É também a pior. Também não é uma ou outra coisa. Para Pessoa, talvez Soares, viajar é espécie de ilusão, insuficiente e dispensável. Em definitivo não a recomenda como alternativa ou solução para coisa qualquer – “Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com minha alma que verei a China, se a vir? Irrespondível. Por palavras diferentes, uma e mais outra vez, a mesma observação recoloca – “A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Ou ainda – “Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constatinopla”.

Aliviados das viagens, desfeitas as malas e delas refeitos, estamos na condição de compreender que à vida convém e basta uma disposição positiva do espírito. A solidão e a monotonia a suprem, não seja a alma dada por demasiado à melancolia. É essa uma das idéias associadas a essa desnecessidade, e futilidade, do viajar para escapar-se. E não diz apenas das físicas viagens. Fala também do atulhar dos sentidos em variegadas sensações, do poluir da vida em jogos de ambições, do atapetar da alma em devaneios e distrações, do afligir do coração em ânsias e frustrações. A essa idéia ajunta-se uma outra que lhe é aparentada - o favorecer intencional de tudo o que na vida seja o mais simples. Ou o cultivar delicado de uma monotonia feita fértil. Conselho este ao qual Proust, já que falamos dele, adotou em sua vida pessoal, propagou e por fim demonstrou em sua genial e enfadonha obra. “Monotizar a existência para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distração”. “A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno”.

Uma vez tornada monótona a vida, não ela propriamente mas seu invólucro exterior, recomenda-se, como condição à liberdade, para aqueles que a apreciem, a solidão. Ou melhor, a possibilidade dela, a capacidade, não de suportá-la, mas de fruí-la aprazeirado e de com ela saudavelmente acompanhar-se. “A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”. Aliás, e como regra geral, não medra a liberdade na presença da necessidade, seja ela do que for.

De nada valem, porém, a simplicidade da monotonia e a liberdade da solidão, que são, assim se diga, circunstâncias do eco sistema, se não acompanhadas das qualidades que, ao existirem no espírito, permitem apreciá-las. A par da inclinação ascendente da alma, acrescente-se a ligeireza do humor. “O único homem feliz é o que não toma nada a sério. Quanto mais as coisas se tomam a sério mais infeliz se é. O que toma a sério a sorte da humanidade é quase o mais infeliz de todos os homens”. Quase! Para mim, e quero crer que também para Pessoa, embora não lhe tenha ocorrido nos dizer, o mais infeliz mesmo, e não apenas infeliz, mas também à beira do ridículo, é o homem que leva a sério a si mesmo. Saber brincar-se, rir-se de si, não tomar-se de imponências, arrogâncias e certezas é marca da alma sadia e prenúncio de inteligência. É, antes de tudo, condição não só psicológica para imunizar-se à pretensa seriedade dos hipócritas, mas requisito estético, ou mesmo ético, da beleza. É a licença, a carta de habilitação para o achar da graça que há no mundo e nos outros. Nada mais despropositado, grosseiro, e risível, do que aquele que de tudo ri desde a empáfia de si mesmo.

Veja só, caro leitor, que acabei por revelar-me um adepto dos manuais de auto-ajuda. Com a diferença, não de todo relevante, de procurá-la, a ajuda, em outra fonte. Extraio conselhos e busco lições de sabedoria onde outros encontram literatura. Compreendo, porém, a futilidade de minha atividade, como de sorte a de toda a literatura expressamente dedicada a tal fim, ainda que não fora insuportavelmente superficial. Tal qual é dito no famoso livro de Wittgenstein (o Tractatus Logicus Philosophicus), a sabedoria que porventura lá se contenha só é acessível àqueles que por seus próprios meios, suas experiências e reflexões, já a encontraram. Para esses, soa como um reconhecimento e uma confirmação ver que um outro espírito, alhures, pensou o mesmo que um dia na solidão do pensamento lhe ocorreu. Aos demais, é completamente inútil, quando não simplesmente incompreensível e, em todo o caso, inaceitável.

Fora-se resumir o que aqui se aconselha, numa frase à minha moda, talvez esta fosse - Tudo consiste em aliar-se, em simplicidade, liberdade, leveza e humor, à molecagem básica da existência. No mais, acrescente-se, é não esquecer de cantar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário