domingo, 12 de julho de 2009

QUA GLOBALIZAÇÃO

Há "globalização" e globalização. A que tá aí, não fora perversa, seria uma piada.

Em Genealogia do Fascismo, Bertrand Russel afirmou, e certamente não foi o primeiro a fazê-lo, que os fatos políticos, os de maior monta, capazes de afetar o destino das nações ou mesmo de toda a civilização, reverberam especulações filosóficas e debates intelectuais muito anteriores. Da mesma forma que um feito tecnológico decorre de uma descoberta da ciência teórica que muito o antecede, sendo que o interregno da idéia à prática no caso político, via de regra, ultrapassa de muito, na realidade por um fator de escala, ao tecnológico. Assim, a realidade política com todo o peso de sua presença concreta, que encerra a potênciade afetar nossas vidas, não é mais do que o arremedo de velhas idéias, vórtices de, em outrora, apaixonadas discussões. A propalada globalização que, a crer na mídia, parece finalmente decidida a penetrar nossas vidas, ainda que a bordo de inovações tecnológicas como a Internet e outras maravilhas da informática e da comunicação, não deixa de ter esse amarelado sabor de passado de que irremediavelmente padecem todas as coisas ao darem-se finalmente à luz da realidade. Muitos foram os pensadores que no decorrer do século passado nos ofereceram a utopia de um mundo feito unitário, sujeito a um governo central de abrangência global. O período durante e logo após a última guerra, por razões óbvias, foi particularmente pródigo nesse tipo de sugestão. Era ponto comum nessas utopias, que noções como pátria, nação, credo, raça, etnia etc. estariam definitivamente superadas, dando lugar a uma solidariedade universal que abrangeria todos os seres humanos, quando não todas as formas de vida no planeta ou mesmo no vasto cosmos. Os de senso mais acurado, entre os quais o mesmo Russel, não podiam deixar de perceber que jaz latente na própria idéia de nação e na mística do patriotismo a semente da guerra e a mecânica do totalitarismo. A valorização exacerbada do nacionalismo era o diagnóstico correto do Nazismo. Abolir em sua raiz essas noções, eis a única forma eficaz de prevenir o mundo contra vindouras recorrências desse flagelos políticos sob os mais diversos disfarces.

A primeira constatação sobre a globalização é, portanto, a de que se trata, pelo menos em princípio, da realização de utopia longamente ansiada pelos mais lúcidos e bem intencionados entre nós. Logo, é de se esperar que seja algo benfazejo, que propicie os benefícios de uma organização política racional. Algo que conduza a uma forma superior de convivência entre os seres humanos e que promova as condições de bem estar para a vida humana na face da terra. Ademais, trata-se de uma dessas idéias que têm o peso do inexorável, que parecem exprimir o inevitável e cuja realidade é mera questão de tempo.

Então tá. A globalização que vivemos no pequeno planeta, não temos porque nos iludir, não nos é dada como a opção de des-descobrir o que foi descoberto. Há globalizações e globalizações. A que está aí na ordem do dia não é "the real thing". É uma globalizaçãozinha parcial, compartimentada, atingindo apenas alguns aspectos das relações humanas. A parcialidade pode até ser uma característica aceitável em alguns casos mas é certamente imperdoável em algo que pretende ser uma globalização. Estou consciente de que essa frase encerra um jogo de palavras que a aproxima de uma tautologia, pelo truque de os termos parcial e global correrem em eixos diferentes. Ainda assim, há justeza no que ela afirma. Os desníveis nos graus de globalização, nos aspectos culturais, políticos, econômicos que, embora diversos, são irremediavelmente interdependentes, provocam inevitáveis distorções. Estas, fruto da feição incompleta da globalização, são, mais que a própria, responsáveis pelas mazelas sociais que a ela se atribuem. Em outras palavras, é no mínimo uma imprecisão, para não dizer distorção, falar em globalização tout court, sem relativizá-la e qualificá-la. Essa ainda não nos visitou. A que está aí é plural e exige adjetivos que a discrimine. Há a globalização da informação, da tecnologia, da economia etc.

Esta última é apontada como responsável pela mazela que mais desassossego tem provocado neste início de século: o desemprego. Verdadeira asa de urubu a empanar o indisputado sucesso do capitalismo sobre seus oponentes ideológicos, a essa altura todos na lona. Vejamos até que ponto procede tal acusação. Sem dúvida, um dos efeitos do relaxamento das fronteiras nacionais tem sido o de permitir que empresas com condições de atuar world wide, e a tecnologia faz com que cada vez mais empresas tenham essa condição, venham a fazê-lo em todas as etapas de sua operação que julguem vantajoso, e não apenas na comercialização, como era usual. Isso inclui a produção e a consequente contratação de mão-de-obra. Essa é a razão pela qual produtos made in determinado país tenham na realidade componentes manufaturados no México, outros na Coréia, um chip no Japão e a carcaça nos EUA. Ou que empresas de informática vendam e desenhem seus softwares nos EUA mas contratem as linhas de códigos a programadores na Índia, país que fez, e faz, grande investimento na formação de mão-de-obra sofisticada. A lógica do capitalismo aplicada em escala global o faz buscar a produção onde ela for mais conveniente e menos custosa. Isso põe a Europa em más condições dado o alto valor de seus salários e dos encargos dos seus sistemas de proteção social. De fato, é ela quem tem sido mais duramente afetada pelo fenômeno do desemprego, pelo qual a globalização é acusada. No entanto, para cada emprego que some na Europa há um que surge na Ásia e, portanto, a globalização por si só não provoca um aumento líquido de desemprego no mundo. Aliás, isso nos traz à questão do chamado custo Brasil, ao qual pretendem alguns atribuir a culpa do desemprego em nosso país, do que segue ser sua diminuição a solução. Examinado no contexto global, isso soa, no mínimo, como piada. Uma piada de mau gosto. O Brasil possui uma das mãos-de-obra mais baratas do mundo. Pagam-se por aqui salários extremamentes baixos, mesmo para os padrões do terceiro mundo. Para essa alegada desvantagem relativa, culpam-se os encargos trabalhistas que oneram a folha e tramam-se acordos para eliminá-los. Esses encargos constituem, na sua maioria, salários indiretos e direitos sociais a duras penas conquistados por anos de resistência sindicalista e lutas políticas. Aboli-los, um grave retrocesso, para o qual compactuam políticos e entidades do sindicalismo pelêgo, autodenominado de resultados (para os dirigentes e patrões). Na realidade, no que tange à globalização, a situação é favorável ao Brasil e o seria muito mais não fosse pelo baixo nível educacional do nosso trabalhador, fruto do continuado e persistente descaso nacional com um projeto sério de educação. Ainda assim, não é outra razão pela qual pipocam na imprensa as notícias de plantas multinacionais a instalarem-se no Brasil. As condições proporcionadas por essa parcial globalização não são no entanto, de uma maneira geral, favoráveis ao trabalho. Há uma tendência favorável a um nivelamento por baixo dessas condições. Ganha fábricas e empregos quem pedir menos. A contrapartida que equalizaria essa situação seria a globalização dualizada das oportunidades de trabalho, que daria ao trabalhador o direito de trabalhar onde melhor lhe conviesse, onde as condições de trabalho fossem mais favoráveis. "Eu só boto be bop no meu samba quando o Tio Sam tocar tamborim". Distribuam-se green cards aos sem-terra de Marabá e começaremos a falar em globalização. Até lá, usar esse termo é apenas ridículo, não fora, sobretudo, perverso.