quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Natureza e Felicidade

Artigo que será publicado na 26ª edição da Revista Sustentação, do Conselho das Secretarias e Secretários de Saúde Municipal do Ceará (Cossems-CE)

“Tudo quanto é percebido encontra-se na natureza”
Alfred North Whitehead – O Conceito de Natureza


Um dos meus heróis intelectuais da antiguidade é o filósofo helênico (isso é, do mundo Grego após as conquistas de Alexandre, pós-Aristotélico, portanto) Epicuro. Para Epicuro, a filosofia, ou, se quisermos, o conhecimento, dividia-se em três partes: canon, física e ética, com essa ordem de precedência. Por canon, entenda-se, aos preços de hoje, a lógica, base do pensamento. Física era o estudo da physis, que se pode bem traduzir por “natureza”, ou seja, compreendia o conjunto das ciências naturais, mas era, para Epicuro, sobretudo a cosmologia, o estudo da estrutura e constituição última do mundo. Por ética, não entendia ele um sistema moral, mas a teoria do que constitui a felicidade humana e a forma prática de realizá-la. Chamei atenção para a ordem das ciências porque, para Epicuro, a base para a investigação do que constitui o bem para o Homem é o conhecimento da natureza. Também, para ele, nenhuma filosofia se justifica se não tiver por fim e objetivo a felicidade humana.

Epicuro foi um atomista. Isto quer dizer que ele pertencia a uma linhagem de filósofos que foi largamente minoritária no pensamento grego, quase que totalmente subjugada pela corrente predominante, inaugurada por Parmênides e consolidada por Sócrates, Platão e Aristóteles. Como atomista, obviamente, sustentava que não era a matéria, e no caso de Epicuro, nem mesmo o próprio espaço e o tempo, contínua, que não podia ser dividida indefinidamente, ao contrário do que ensinava Aristóteles. Professava ainda, também em oposição a Aristóteles, a existência do vazio, no qual os átomos se moviam incessantemente. Uma máxima atomista famosa assevera que tudo o que há são átomos e o vazio.

Não são, porém, esses os aspectos do atomismo e do pensamento epicurista que aqui mais nos interessam. O que justifica a invocação do filósofo é a ligação que sua doutrina estabelece entre o conhecimento da natureza e a felicidade humana. Para entendê-la, devemos recuar a uma idéia profunda dos filósofos da physis, particularmente cara aos atomistas. A natureza não tem intenções nem objetivos, e não há desígnios antropomórficos ou super naturais por trás dela, para além de suas próprias leis internas e do acaso. Em particular, a natureza é irritantemente indiferente aos negócios humanos.

Por que é esta visão cosmológica importante? Porque se assim é, não devemos procurar aquilo que constitui o bem do Homem, a forma de vida que lhe convém, no cumprimento de algum dever ou função que desígnios insondáveis lhe reservem, que possam porventura justificar, ou desculpar, a dor, o sofrimento, o sacrifício e a doença. A virtude do Homem e a sabedoria da vida bem vivida estão na busca da felicidade. Ou seja, em seguir com naturalidade, mas não sem sabedoria, aquilo a que sua própria natureza o inclina.

A essa singela filosofia deu-se o nome de hedonismo, e foi frequentemente muito mal entendida e mui duramente atacada. Seu conceito chave é o de felicidade, ou o de prazer, seu associado (e foi precisamente a má interpretação desses conceitos a forma favorita de distorcer o epicurismo). No entanto, em Epicuro as idéias de prazer e de felicidade encontram formulação extremamente simples: O prazer não é outra coisa que a ausência da dor, assim como é a felicidade a suspensão do sofrimento. Ao contrário do mundo físico, não há vácuo ou estado neutro no espaço afetivo. O ser humano, em acordo à sua própria natureza, há que almejar o prazer e buscar a felicidade. Essa busca não estaria, porém, na excitação desmedida dos sentidos, nos excessos da sensualidade, na gratificação imediata e irrefletida dos desejos, pois a tais efêmeros estados seguir-se-iam invariavelmente a dor e o sofrimento. A sabedoria consiste precisamente no ajuizamento dessas relações para que possa o indivíduo manter afastado de si tais perturbações do bem estar físico e espiritual. Pode-se afirmar que Epicuro, sem que desse termo se utilizasse, criou, ou pelo menos propagou, o conceito de prazer, ou felicidade sustentável. Uma felicidade que deriva, afinal, da simplicidade e da frugalidade.

Penso haver assim, me valendo do antigo filósofo, estabelecido uma conexão entre natureza e saúde, desde que vocês concordem em adotar, como faço, a sinonímia entre felicidade e saúde, uma vez que a última a concebo inteira, como do corpo e do espírito, o que envolve a ausência de inquietações da mesma forma que a de febres e inflamações. Essa conexão vai da natureza para a felicidade, uma vez que a obtenção da última está subordinada à compreensão da primeira e consiste em harmonizar a ecologia interna, material e afetiva, da mesma forma que é naturalmente harmônica a natureza.

Neste ponto, devemos compreender com toda clareza que a natureza não se pode desarmonizar. O que quer que a ela ou nela aconteça não interfere um átimo em sua harmonia, pois a ela cabe simplesmente ser o que é, o que quer que seja. Nós é que a ela atribuímos qualidades que de per se não possui. Assim, quando falamos em desequilíbrio da natureza, estamos na realidade falando na sua precarização qua habitat para nós e outras espécies. Afetar esse habitat, a ponto de torná-lo inóspito a nossa felicidade e saúde, ou talvez mesmo definitivamente impróprio à vida humana, esse o tanto de poder que nos corresponde. Para a natureza mesma isso nada representa, mas para a espécie humana pode tudo representar, inclusive, pelo nosso extermínio, o fim da natureza para nós.

Encerro com alguns versos de Jorge Drexler, que dizem o que acabo de dizer melhor do que eu poderia:


“Una vida lo que um sol, vale
...
Una estrellita de nada
En la periferia de una galaxia menor
Uno , entre tantos millones
E un grano de polvo girando a su alrededor
Non dejaremos huella
Solo polvo de estrellas.


Tarcisio Pequeno