quarta-feira, 9 de setembro de 2009

De Casas e Livros



Tarcisio Pequeno


Em “O Aleph”, há um conto em que Borges fala de Averróis, na Espanha moura, entregue ao trabalho de traduzir e interpretar a obra de Aristóteles – “esse grego que foi outorgado aos homens para lhes ensinar tudo o que se pode saber”. Ao imaginá-lo trabalhando, diz Borges que o exercício de formar silogismos e elaborar vastos parágrafos não o impedia de sentir o conforto da profunda casa à sua volta, onde “de algum pátio invisível se elevava o rumor de uma fonte” e que “algo na carne de Averróis agradecia à constância da água”.

Escolho esse trecho para falar de como um dia, quando morando em terra estrangeira, me comoveu lê-lo, ainda que o fizesse em uma tradução de contos de Borges para o inglês, reunidos sob o nome de Labyrinths, em uma edição paperback da Penguin, que me custou exatas 4.99 libras esterlinas. (Não pense o leitor que tenho tal memória. É que o preço está impresso na capa do livro, que ainda guardo) Borges, acho, veste-se muito bem em inglês. De uma certa forma ele, em espanhol, já sempre me pareceu em inglês, não só pela economia das frases e a certeza do pensamento, mas até pelos temas, muitas vezes mais próximos, me parece, de uma sensibilidade saxônica, em todo o caso universal, do que de uma alma castelã.

Bem, o que queria dizer é que o idioma em que li não impediu, talvez tenha mesmo ampliado, o efeito que sobre mim teve a imagem da casa de Averróis. Em meu espírito, substitui imediatamente a idéia da ampla casa de Córdoba, em sua inimaginável arquitetura árabe, pela familiaridade de um casarão acorredozado, desses que temos no Ceará, cheio de portas duplas, duplamente abertas. Embora possa não ser uma casa profunda, como a de que fala Borges, a sabedoria de suas grossas paredes e do exagerado pé direito a garantem de um frescor sombreado, quase úmido, em meio à ensolarada secura do sertão à volta. Pude imaginar-me ali, em alguma infância, e por um momento consolar-me do desterro no apartamento impessoal onde de fato estava. Pensei em que também na minha carne havia daquela aridez ancestral que Borges atribuía a Averróis e pensei, ainda que na frieza de um inverno, o quanto minha alma também se comprazeria do marulho incessante de uma água corrente.

Nesses dias, por força ou graça do feriado, tenho permanecido em casa ainda mais do que já costumo. E tenho ainda mais visto o quanto gosto de fazê-lo, o quanto a casa me cabe, o quanto me agrado de aqui trabalhar ao fazer o que nem de trabalho chamo. E não se trata de um casarão cearense e muito menos de um palácio Cordobês. É apenas um apartamento que apenas me comporta. Mas o faz perfeitamente, e sem que nada sobre, de mim ou dele. E enquanto me abriga e protege, deixa-me ao mesmo tempo ao sabor do mundo, pois nele a luz e o vento entram sem restrição, assim como sem restrição entra a paisagem à beira mar que o cerca.

Talvez seja essa mesma a maior virtude desse lugar a que chamo casa. A de me enclausurar e ao mesmo tempo me entregar ao mundo. Assim, penso, deveriam ser também os amores, mas isso é uma outra história e um outro pensamento. O fato é que tudo aqui à minha volta parece ser feito a servir a essa dupla função. Aqui tenho as músicas que quero escutar e as imagens que penso ver. No pequeno escritório, em que trabalho e não fico rico, mas quero crer que aumente meu amor, tenho dessas máquinas a que chamamos computadores, interconectados entre si e de si ao mundo. Eles também, ao seu jeito, me guardam e distribuem. Guardam um pouco da minha memória, dos meus pensamentos, das minhas melhores idéias, se é que as tenho, enquanto me trazem a toda hora a correspondência, e assim os amigos, e os colegas e as tarefas, e me provêm da infinidade de informações do que possa haver no mundo.

Sobretudo, tenho aqui livros. Mais que tudo o mais, que os computadores e os aparelhos, são eles que mais me dão do que gosto e preciso. Digo-o, e parece que finalmente aproximo-me do objeto desse artigo. É que de vez em quando se fala que têm os livros os dias contados e que sua extinção é garantida. É esse o mesmo discurso que fala da reposição inevitável dos meios que envolvem contato físico direto de qualquer ordem, a troca e o transporte de moléculas, pelo comércio puro dos sinais. Acho tudo isso uma bobagem, e isso era, afinal, o que gostaria de dizer. Tudo é feito para conviver e acrescentar-se, e assim tem sido. Falou-se que o cinema condenaria ao fim o teatro, e que a televisão condenaria a ambos. Da mesma forma, os meios virtuais abateriam os livros. Livros, ademais, são objetos transcendentes, está certo o Caetano. Não podem assim ser destruídos.

Acho isso uma declaração quase banal, com tanto de óbvia quanto de desnecessária, mas até a debates já compareci para ter de fazê-la. Isso, todavia, não me desculpa por ocupar do espaço e da paciência de vocês para repeti-la. Devo admitir que fui movido mesmo foi por um sentimentalismo: a sensação de gratidão pelo que a companhia dos livros nesses dias de reclusão me tem dado. Foi por essa reclusão que reli Borges, e pensei em casas e pensei de quanto, como em quando “lá em Londres me sentia longe daqui”, lê-los tanto me valeu.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tempus Fugit



Tarcisio Pequeno


Pedem-me que escreva sobre o futuro. Muito bem. Antes, porém, é preciso que discorra sobre um tema que o engloba: o tempo. Até porque, bem considerado, sob muitos aspectos o futuro não existe e mesmo da realidade substantiva do tempo não falta filósofo que duvide. Basta que citemos Agostinho, para um nobre, e santo, exemplo. Tomemos, à guisa de exercício argumentativo, por critério de existência algo mui razoável: tudo aquilo que, em princípio pelo menos, pode ser experimentado. Por tal critério, mantêm-se o passado e o presente, mas se há de abolir o futuro. Pelo menos, é isso o que logicamente decorre. Senão vejamos. Do passado, já tivemos a experiência e dela nos resta o registro, sob a forma de temores e seqüelas, por vezes, tantas vezes, ou de ensinamento e sabedoria, por outras, umas poucas outras. O presente é o que aqui agora vivo. Ou vivi? Já não sei, pois ‘agora’ é a agonia do instante deteriorando-se em passado. O tempo, como já sabia a mitologia, é um Deus que devora incessantemente aquilo que gera. Ou, pela visão mais douta e neutramente lógica da escolástica, a contínua precipitação da possibilidade em atualidade. Um filtro, pois, por onde a arborescente multiplicidade do possível, com sua variedade quase infinita de ramos e desvãos, esperanças e temores, se escoa na fina e concreta linha do real. “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, como nos lembra Gil. É também o único.

O futuro, pois, não existe. Dele, nenhum registro ou atualidade há, para além dos meros anseio e receio. E estas são categorias psicológicas, estados d’alma insuflados por nossa imaginação e não concreta e efetiva experiência. O futuro, quando, e se, viermos a experimentá-lo, futuro não mais será. Assim, o futuro não é. De passados e presente, pois, toda a realidade se faz, fez e fará.

Se não existe o futuro, não há do que escrever e posso aqui encerrar. O fato, porém, é que ainda que o arrazoado acima constitua boa argumentação, quanto mais por ela nos embrenhamos menos satisfeitos ficamos. Pois uma argumentação, por mais logicamente bem urdida que seja, jamais será suficiente para nos abolir convicção arraigada no âmago das nossas formas de vida. Como aceitar que não existe o futuro, se é para, pelo e no futuro que no mais do tempo consumimos a vida? Se o futuro é para todos nós razão de viver? A única, por tantas vezes.

Está bem, pode-se admitir, se metafisicamente insistis, que o futuro não existe ontologicamente, como se diria no jargão filosófico, como coisa em si, elemento constituidor de um mundo autônomo, cuja existência e forma de ser independe da vã humanidade. Podemos mesmo ir além e admitir que só os homens temos futuro, pois apenas a nós compete o dom de concebê-lo (e temê-lo). Como advertia Wittgenstein, um cachorro não se pode inquietar com o que acontecerá daqui a duas semanas. Isso é inconcebível de sua parte, ausente do seu mundo, impertinente ao seu modo de vida. Se cachorros falassem, o tempo futuro seria em sua linguagem inexprimível e incompreensível.

Se assim é, e inevitável é que com o futuro vivamos, nos sobra admiti-lo como objeto de humana invenção, obra da nossa consciência e imaginação. Que seja! Diferença de monta não faz, seja ele elemento primo da natureza ou objeto derivado da cultura humana. Na realidade, a segunda alternativa tem de superior sobre a primeira o fato de nos distinguir e enobrecer. O futuro, pois, ao Homem pertence e dele lhe cabe cuidar.

Assim, de futuro em futuro, conduziu o homem a vida ao estágio em que hoje nos encontramos. O irônico, tragicamente irônico, em tal estágio é que aquilo que por séculos não foi mais que uma ociosa e medieval discussão sobre a existência do tempo e do futuro, a entreter mentes contemplativas e distrair-lhes do fastio quotidiano, hoje se coloca como uma questão da mais urgente concretude. Por tempos, por todo o tempo de existência da civilização, nos coube cuidar do advento de um futuro radiante e esplêndido, em contínuo progresso para o gáudio das gerações vindouras. Esse propósito está hoje reduzido a seu mínimo denominador. A tarefa que nos cabe, e sobre a qual muitas e legítimas dúvidas pairam que a logremos, é a de simplesmente garantir que futuro haja. E nele, a vida humana na terra, e a própria terra.

Os Ratos e o Mistério da Inteligência

Tarcisio Pequeno

Para Aristóteles, um grego que ensinava serem os homens destinados a conhecer sobre todas as coisas com perfeição, o cérebro, essa gosma gelatinosa com suas inúmeras dobras serpentinadas, do qual tanto nos orgulhamos, era uma espécie de radiador incumbido de refrigerar o organismo. Ele, e outros do seu tempo, acreditavam que o centro da vida, da consciência e da inteligência localizava-se no fígado (em inglês “liver”, o mesmo radical que dá “live”, viver e “life”, vida). De lá para cá, já se aprendeu um pouco mais sobre o cérebro e um pouco mais, mas talvez não muito mais, sobre aquilo que é considerado a sua função mais importante, a inteligência. Sobre esta, pesa sempre uma aura de mistério e mistificação. A inteligência é uma das qualidades escolhidas pela nossa cultura para a distinção dos seres humanos, para marcar-lhes a superioridade ou inferioridade com respeito aos demais, assim como o é a beleza. Têm as duas em comum o fato de serem fortuitas, em grande medida inatas, às vezes hereditárias, frutos do acaso muito mais que do mérito. Uma leve calosidade de massa cinzenta em local estratégico, uma melhor irrigação sanguínea em outro, assim como um centímetro a mais ou a menos no nariz, e poderá estar feita a diferença entre fortuna e desdita, sucesso e fracasso, felicidade e infortúnio.

O papel da ciência, da fronteira da ciência, na melhor acepção que possa essa palavra ter, é o de transformar aquilo que é tido como mistério, fenômenos inalcançáveis por nosso entendimento ou imaginação, questões informuláveis, em problemas, ou seja, em objetos de estudo, investigação e compreensão. Assim foi um dia com respeito aos trovões, ou à sustentação da terra nos espaços sidéreos, ou à diversidade das espécies na face da terra, todos milagres a requerer o concurso de deuses ou de demônios. Mas, por favor, não tomem essas declarações como a afirmação de que eliminar do mundo o mistério seja um valor em si ou algo a ser perseguido pela ciência. Sem mistérios, e disso nossa civilização é testemunha, ganha a vida insuportáveis monotonia e trivialidade. Além disso, não têm nossas vãs ciência e filosofia esse poder de eliminar, ou reduzir, sequer, o mistério. Os verdadeiros mistérios, os da vida em geral e os da existência individual e particular, continuam intocados. O que a ciência pode eliminar são os pseudo mistérios, assim tidos por conta da vastidão da nossa ignorância. Seu papel, o seu mais elevado papel, seria, portanto, o de dirigir a nossa atenção e o nosso maravilhamento para onde o mistério e o milagre realmente estão, e tirá-los do que é humanamente compreensível e explicável. Como dizia um hino dos 70´s, “não adianta nem me abandonar, mistério sempre há de pintar por aí”.

Bom, feita essa necessária ressalva, voltemos à inteligência, imaginação, memória e consciência, ainda hoje tidas como fenômenos extremamente misteriosos, os últimos, talvez, a justificarem, por parte de alguns, como Descartes e seus seguidores, o apelo a substâncias extra-materiais para a sua explicação. Aos poucos, temos assistido à gradual transformação desses mistérios em problemas, o que, creio, é uma espécie de privilégio para nós. Um passo na direção dessa desmistificação, um grande passo, foi dado por um grupo de cientistas do Departamento de Biologia Molecular da Universidade de Princeton, chefiados por um chinês, Dr. Tsien, que lograram criar, por manipulação genética, um rato hiper inteligente. Quer dizer então que o Dr. Tsien isolou o gen da inteligência e que, de lambuja, ainda dominou a técnica de fabricar pessoas mais inteligentes? Não é bem assim, é claro, embora a manchete na capa da revista TIME que na época divulgou o feito estampasse: “The IQ Gene?”. A inteligência é uma faculdade complexa, para a qual concorrem inúmeras operações e sub-sistemas no cérebro, além de muitos fatores de ordem educacional e cultural. Não há gen da inteligência, isso seria um absurdo. O que os caras conseguiram é algo bem mais modesto, mas ainda assim intrigante e revelador. Há uma proteína chamada NMDA, que atua como receptor de sinais químicos. Essa proteína é muito abundante no hipocampo, região do cérebro que se acredita ser responsável por uma função crucial no aprendizado: a transformação de registros temporários em memórias permanentes. Com o envelhecimento, o que nos ratos se dá logo após a puberdade, a concentração dessa substância no hipocampo declina acentuadamente, declinando, consequentemente, sua capacidade de aprendizado. O que o grupo de Princeton fez foi desenvolver uma linhagem de ratos na qual um gen que concorre na produção dessa proteína foi reforçado, mantendo mais elevada a concentração de NMDA no hipocampo. Como resultado, o rato turbinado aprende e retém o conhecimento de forma muito mais eficiente que seus míseros colegas de raça.

Se a ciência é a arte de dissolver falsos mistérios, a tecnologia parece ser a arte de reduzir, na vida, o papel do acaso. Como conhecimento, esse resultado contribui para iluminar nossa compreensão da inteligência, para o entendimento, portanto, do mundo e de nós mesmos. Por outro lado, porém, traz a possibilidade de manipular esse mundo. E de fazê-lo numa área tão sensível como o incremento da própria inteligência. Embora, de forma concreta, seja essa uma possibilidade ainda remota, está desde já anunciada. Não há dúvidas de que teremos um dia que confrontá-la. Porque deixar ao destino e ao acaso serem nossos filhos brilhantes ou não? Embora não tenha ouvido Heideger dizê-lo, a experiência humana mostra que, de fato, tudo aquilo que é factível acaba por ser feito. Teremos que nos confrontar um dia com a convivência de seres humanos unpluged versus homens high tech?

O perigo se acentua quando vemos a tendência à parcialização e ao reducionismo crescerem. Será uma maior capacidade de retenção da memória algo a contribuir para a felicidade, que é o que realmente importa? E se a faculdade de esquecer é de fato uma benção, uma propriedade protetora longamente aperfeiçoada ao longo da evolução para tornar a vida mais suportável? Creio que a lição a tirar de tudo isso é algo mais ou menos assim. Já se acentua por demasiado, em nossa cultura, o desnível entre conhecimento e sabedoria. A ciência é um instrumento ao primeiro, não à segunda. Estamos caminhando celeremente, em muitas frentes, para uma situação em que essa combinação entre conhecimento e capacidade técnica de um lado com estupidez social e imbecilidade existencial do outro, será de fato, creio que já é, insustentável. Está em teste a nossa capacidade adaptativa, como espécie, de reagir a essa situação, ou a virarmos dinossauros. Dinossauros, cada vez mais, potentes, inteligentes e estúpidos rumando céleres e animadamente em direção à auto extinção.

domingo, 6 de setembro de 2009

O Espírito do Século


Reflexões, datadas mas atuais, à beira de um século agonizante

Tarcisio Pequeno



O século aproxima-se do seu inexorável fim, não sei se notaram. Aliás, não falta quem nos venha a toda hora lembrar. Aqui, a Globo nos presenteou com aqueles graciosos relógios, destinados a incrementar a poluição visual das cidades, mas também a nos lembrar que completam-se 500 anos redondos do início do processo de expoliação de nossas terras pela Europa. E ainda havemos de comemorar. Mas os há também, de mesmas proporções e feiúra, destinados a nos atemorizar com a lembrança da aproximação do fim do milênio. Em vocês, não sei o que provocam. Em mim, quase o mesmo que me provoca o indefectível telefonema do Lira Neto na noite de terça feira lembrando-me o artigo devido na manhã seguinte e que sequer iniciei. Ou a completação de mais um aniversário. Aquela sensação de tempo passante e dever não cumprido – mais um milênio se vai e nada de valia realizamos.

Na Europa, em Paris, um motorista de taxi me apontava orgulhoso, e com discreto porém evidente desdém ante a minha inferioridade sul americana, um angustiante relógio que digitalmente registrava, aos segundos, o tempo de vida que restava ao milênio agonizante. Fui obrigado então a ouvi-lo teorizar sobre quantos reveillons do ano dois mil era possível comemorar, viajando de Concorde em contrário ao fuso horário. Estávamos no terceiro ou quarto, já não lembro, tantas foram as champanhes, lá pras bandas da Nova Caledônia, quando fui salvo pelo fim da corrida.

Não é nada disso porém, leitor, que lhes desejo falar. Desculpem-me o estilo errante. Quero falar é do fato de que a aproximação de fins de séculos, milênios, ou mesmo décadas, e anos até, à falta de coisa melhor, é saudada por listas dos maiores e melhores da década, século, milênio, etc. Muito embora, o que foi de fato significativo, relevante, transformador e permanente em um século só possa ser adequadamente aquilatado lá pela metade do século seguinte, na melhor das hipóteses. Mas, quem pode dar-se ao luxo de esperar tanto para a confecção de tais listas? O mundo arfa de justa impaciência em saudar seus melhores e revistas, magazines e pasquins há que vender.

Assim, a revista Time de algumas semanas atrás, tendo à capa um Einstein deprimido no divã do Dr. Freud, oferecia sua lista. A lista da Time era das maiores mentes do século, lá se dizia. Filósofos, cientistas, inventores, economistas até, que mais influenciaram esse período. Fermi, o químico, Keynes o economista, Piaget, o cientista da inteligência, Hubble, o astrônomo, Fleming, o da penicilina, etc.

Entre eles, Alan Turing, Kurt Gödel e Ludwig Wittgenstein. Pronto, era neles que queria chegar. Quase findo o artigo, e só agora atinjo meu assunto. E porque quero falar deles? Em primeiro lugar porque, ao contrário da maioria dos que aparecem na lista, são relativamente pouco conhecidos da mídia, com a possível exceção de Wittgenstein, tornado pop mais recentemente. Em todo o caso, muito mais que seus nomes, desconhecido é seu trabalho. Não produziram inventos maravilhosos, não revelaram segredos profundos do coração do átomo ou dos confins do universo. Não revolucionaram a economia nem curaram doenças. No entanto, e essa é a verdadeira razão porque tanto lhes queria deles falar, marcaram como ninguém, em suas idéias e com seus trabalhos, aquilo que, considero, veio a ser, no campo do conhecimento, o verdadeiro espírito deste século. Uma marca que se tornará todavia mais clara, creio, à medida que o distanciamento no futuro permitir contemplar toda a extensão da sua influência.

Os três têm em comum o fato de terem estudado, em aspectos diferentes, o mesmo tema: a linguagem. A linguagem em seu caráter mais lógico, abstrato e fundamental. A linguagem entendida em sua estrutura matemática. Essa metafísica matemática da linguagem é o coração da lógica, que dá forma ao pensamento que, por sua vez, é o coração da própria matemática, da filosofia e da ciência (eu sei, há uma circularidade aí, e essa circularidade dará muito o que pensar e falar). A compreensão da essência mais profunda da linguagem é uma façanha desse século. Ela permitiu antever a extensão das coisas que se pode fazer com ela, seus muitos papéis, sua imensa importância e também suas frustrantes limitações. Essa compreensão colocou a linguagem no centro do pensamento neste século. A colocou também, como nunca antes, no centro de nossas vidas.

Coube a Wittgenstein esclarecer o papel da linguagem nas ciências e na filosofia, entender as limitações que o seu inevitável uso impõe à expressão do pensamento e, a partir dessa compreensão, empreender uma crítica radical da filosofia tradicional e à sua reformulação. A Gödel, coube explorar as últimas consequências das limitações que a linguagem impõe à sistematização do conhecimento e à dedução lógica, estabelecendo, no teorema que recebeu seu nome, um dos resultados mais bonitos e importantes do pensamento contemporâneo. Belo em sua surpresa, atordoante na humildade que impõe ao homem que busca o conhecimento.

Finalmente, coube à Turing, antes que qualquer computador em ferro, fios e semicondutores houvesse sido construído, imaginar a máquina computadora ideal, capaz de computar tudo o que jamais pudesse vir a ser computado. Coube-lhe também estabelecer as restrições e os limites que são intrínsecos ao processo de resolver problemas mecanicamente. Coube-lhe, postular, entender e limitar o computador, essa máquina de manipular linguagem, que tanto nos fascina.

Esse foi pois, no meu entendimento, o século da linguagem. Foi, portanto, o século de Turing, Gödel e Wittgenstein.