segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Tempus Fugit



Tarcisio Pequeno


Pedem-me que escreva sobre o futuro. Muito bem. Antes, porém, é preciso que discorra sobre um tema que o engloba: o tempo. Até porque, bem considerado, sob muitos aspectos o futuro não existe e mesmo da realidade substantiva do tempo não falta filósofo que duvide. Basta que citemos Agostinho, para um nobre, e santo, exemplo. Tomemos, à guisa de exercício argumentativo, por critério de existência algo mui razoável: tudo aquilo que, em princípio pelo menos, pode ser experimentado. Por tal critério, mantêm-se o passado e o presente, mas se há de abolir o futuro. Pelo menos, é isso o que logicamente decorre. Senão vejamos. Do passado, já tivemos a experiência e dela nos resta o registro, sob a forma de temores e seqüelas, por vezes, tantas vezes, ou de ensinamento e sabedoria, por outras, umas poucas outras. O presente é o que aqui agora vivo. Ou vivi? Já não sei, pois ‘agora’ é a agonia do instante deteriorando-se em passado. O tempo, como já sabia a mitologia, é um Deus que devora incessantemente aquilo que gera. Ou, pela visão mais douta e neutramente lógica da escolástica, a contínua precipitação da possibilidade em atualidade. Um filtro, pois, por onde a arborescente multiplicidade do possível, com sua variedade quase infinita de ramos e desvãos, esperanças e temores, se escoa na fina e concreta linha do real. “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, como nos lembra Gil. É também o único.

O futuro, pois, não existe. Dele, nenhum registro ou atualidade há, para além dos meros anseio e receio. E estas são categorias psicológicas, estados d’alma insuflados por nossa imaginação e não concreta e efetiva experiência. O futuro, quando, e se, viermos a experimentá-lo, futuro não mais será. Assim, o futuro não é. De passados e presente, pois, toda a realidade se faz, fez e fará.

Se não existe o futuro, não há do que escrever e posso aqui encerrar. O fato, porém, é que ainda que o arrazoado acima constitua boa argumentação, quanto mais por ela nos embrenhamos menos satisfeitos ficamos. Pois uma argumentação, por mais logicamente bem urdida que seja, jamais será suficiente para nos abolir convicção arraigada no âmago das nossas formas de vida. Como aceitar que não existe o futuro, se é para, pelo e no futuro que no mais do tempo consumimos a vida? Se o futuro é para todos nós razão de viver? A única, por tantas vezes.

Está bem, pode-se admitir, se metafisicamente insistis, que o futuro não existe ontologicamente, como se diria no jargão filosófico, como coisa em si, elemento constituidor de um mundo autônomo, cuja existência e forma de ser independe da vã humanidade. Podemos mesmo ir além e admitir que só os homens temos futuro, pois apenas a nós compete o dom de concebê-lo (e temê-lo). Como advertia Wittgenstein, um cachorro não se pode inquietar com o que acontecerá daqui a duas semanas. Isso é inconcebível de sua parte, ausente do seu mundo, impertinente ao seu modo de vida. Se cachorros falassem, o tempo futuro seria em sua linguagem inexprimível e incompreensível.

Se assim é, e inevitável é que com o futuro vivamos, nos sobra admiti-lo como objeto de humana invenção, obra da nossa consciência e imaginação. Que seja! Diferença de monta não faz, seja ele elemento primo da natureza ou objeto derivado da cultura humana. Na realidade, a segunda alternativa tem de superior sobre a primeira o fato de nos distinguir e enobrecer. O futuro, pois, ao Homem pertence e dele lhe cabe cuidar.

Assim, de futuro em futuro, conduziu o homem a vida ao estágio em que hoje nos encontramos. O irônico, tragicamente irônico, em tal estágio é que aquilo que por séculos não foi mais que uma ociosa e medieval discussão sobre a existência do tempo e do futuro, a entreter mentes contemplativas e distrair-lhes do fastio quotidiano, hoje se coloca como uma questão da mais urgente concretude. Por tempos, por todo o tempo de existência da civilização, nos coube cuidar do advento de um futuro radiante e esplêndido, em contínuo progresso para o gáudio das gerações vindouras. Esse propósito está hoje reduzido a seu mínimo denominador. A tarefa que nos cabe, e sobre a qual muitas e legítimas dúvidas pairam que a logremos, é a de simplesmente garantir que futuro haja. E nele, a vida humana na terra, e a própria terra.

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