segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Os Ratos e o Mistério da Inteligência

Tarcisio Pequeno

Para Aristóteles, um grego que ensinava serem os homens destinados a conhecer sobre todas as coisas com perfeição, o cérebro, essa gosma gelatinosa com suas inúmeras dobras serpentinadas, do qual tanto nos orgulhamos, era uma espécie de radiador incumbido de refrigerar o organismo. Ele, e outros do seu tempo, acreditavam que o centro da vida, da consciência e da inteligência localizava-se no fígado (em inglês “liver”, o mesmo radical que dá “live”, viver e “life”, vida). De lá para cá, já se aprendeu um pouco mais sobre o cérebro e um pouco mais, mas talvez não muito mais, sobre aquilo que é considerado a sua função mais importante, a inteligência. Sobre esta, pesa sempre uma aura de mistério e mistificação. A inteligência é uma das qualidades escolhidas pela nossa cultura para a distinção dos seres humanos, para marcar-lhes a superioridade ou inferioridade com respeito aos demais, assim como o é a beleza. Têm as duas em comum o fato de serem fortuitas, em grande medida inatas, às vezes hereditárias, frutos do acaso muito mais que do mérito. Uma leve calosidade de massa cinzenta em local estratégico, uma melhor irrigação sanguínea em outro, assim como um centímetro a mais ou a menos no nariz, e poderá estar feita a diferença entre fortuna e desdita, sucesso e fracasso, felicidade e infortúnio.

O papel da ciência, da fronteira da ciência, na melhor acepção que possa essa palavra ter, é o de transformar aquilo que é tido como mistério, fenômenos inalcançáveis por nosso entendimento ou imaginação, questões informuláveis, em problemas, ou seja, em objetos de estudo, investigação e compreensão. Assim foi um dia com respeito aos trovões, ou à sustentação da terra nos espaços sidéreos, ou à diversidade das espécies na face da terra, todos milagres a requerer o concurso de deuses ou de demônios. Mas, por favor, não tomem essas declarações como a afirmação de que eliminar do mundo o mistério seja um valor em si ou algo a ser perseguido pela ciência. Sem mistérios, e disso nossa civilização é testemunha, ganha a vida insuportáveis monotonia e trivialidade. Além disso, não têm nossas vãs ciência e filosofia esse poder de eliminar, ou reduzir, sequer, o mistério. Os verdadeiros mistérios, os da vida em geral e os da existência individual e particular, continuam intocados. O que a ciência pode eliminar são os pseudo mistérios, assim tidos por conta da vastidão da nossa ignorância. Seu papel, o seu mais elevado papel, seria, portanto, o de dirigir a nossa atenção e o nosso maravilhamento para onde o mistério e o milagre realmente estão, e tirá-los do que é humanamente compreensível e explicável. Como dizia um hino dos 70´s, “não adianta nem me abandonar, mistério sempre há de pintar por aí”.

Bom, feita essa necessária ressalva, voltemos à inteligência, imaginação, memória e consciência, ainda hoje tidas como fenômenos extremamente misteriosos, os últimos, talvez, a justificarem, por parte de alguns, como Descartes e seus seguidores, o apelo a substâncias extra-materiais para a sua explicação. Aos poucos, temos assistido à gradual transformação desses mistérios em problemas, o que, creio, é uma espécie de privilégio para nós. Um passo na direção dessa desmistificação, um grande passo, foi dado por um grupo de cientistas do Departamento de Biologia Molecular da Universidade de Princeton, chefiados por um chinês, Dr. Tsien, que lograram criar, por manipulação genética, um rato hiper inteligente. Quer dizer então que o Dr. Tsien isolou o gen da inteligência e que, de lambuja, ainda dominou a técnica de fabricar pessoas mais inteligentes? Não é bem assim, é claro, embora a manchete na capa da revista TIME que na época divulgou o feito estampasse: “The IQ Gene?”. A inteligência é uma faculdade complexa, para a qual concorrem inúmeras operações e sub-sistemas no cérebro, além de muitos fatores de ordem educacional e cultural. Não há gen da inteligência, isso seria um absurdo. O que os caras conseguiram é algo bem mais modesto, mas ainda assim intrigante e revelador. Há uma proteína chamada NMDA, que atua como receptor de sinais químicos. Essa proteína é muito abundante no hipocampo, região do cérebro que se acredita ser responsável por uma função crucial no aprendizado: a transformação de registros temporários em memórias permanentes. Com o envelhecimento, o que nos ratos se dá logo após a puberdade, a concentração dessa substância no hipocampo declina acentuadamente, declinando, consequentemente, sua capacidade de aprendizado. O que o grupo de Princeton fez foi desenvolver uma linhagem de ratos na qual um gen que concorre na produção dessa proteína foi reforçado, mantendo mais elevada a concentração de NMDA no hipocampo. Como resultado, o rato turbinado aprende e retém o conhecimento de forma muito mais eficiente que seus míseros colegas de raça.

Se a ciência é a arte de dissolver falsos mistérios, a tecnologia parece ser a arte de reduzir, na vida, o papel do acaso. Como conhecimento, esse resultado contribui para iluminar nossa compreensão da inteligência, para o entendimento, portanto, do mundo e de nós mesmos. Por outro lado, porém, traz a possibilidade de manipular esse mundo. E de fazê-lo numa área tão sensível como o incremento da própria inteligência. Embora, de forma concreta, seja essa uma possibilidade ainda remota, está desde já anunciada. Não há dúvidas de que teremos um dia que confrontá-la. Porque deixar ao destino e ao acaso serem nossos filhos brilhantes ou não? Embora não tenha ouvido Heideger dizê-lo, a experiência humana mostra que, de fato, tudo aquilo que é factível acaba por ser feito. Teremos que nos confrontar um dia com a convivência de seres humanos unpluged versus homens high tech?

O perigo se acentua quando vemos a tendência à parcialização e ao reducionismo crescerem. Será uma maior capacidade de retenção da memória algo a contribuir para a felicidade, que é o que realmente importa? E se a faculdade de esquecer é de fato uma benção, uma propriedade protetora longamente aperfeiçoada ao longo da evolução para tornar a vida mais suportável? Creio que a lição a tirar de tudo isso é algo mais ou menos assim. Já se acentua por demasiado, em nossa cultura, o desnível entre conhecimento e sabedoria. A ciência é um instrumento ao primeiro, não à segunda. Estamos caminhando celeremente, em muitas frentes, para uma situação em que essa combinação entre conhecimento e capacidade técnica de um lado com estupidez social e imbecilidade existencial do outro, será de fato, creio que já é, insustentável. Está em teste a nossa capacidade adaptativa, como espécie, de reagir a essa situação, ou a virarmos dinossauros. Dinossauros, cada vez mais, potentes, inteligentes e estúpidos rumando céleres e animadamente em direção à auto extinção.

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