domingo, 6 de setembro de 2009

O Espírito do Século


Reflexões, datadas mas atuais, à beira de um século agonizante

Tarcisio Pequeno



O século aproxima-se do seu inexorável fim, não sei se notaram. Aliás, não falta quem nos venha a toda hora lembrar. Aqui, a Globo nos presenteou com aqueles graciosos relógios, destinados a incrementar a poluição visual das cidades, mas também a nos lembrar que completam-se 500 anos redondos do início do processo de expoliação de nossas terras pela Europa. E ainda havemos de comemorar. Mas os há também, de mesmas proporções e feiúra, destinados a nos atemorizar com a lembrança da aproximação do fim do milênio. Em vocês, não sei o que provocam. Em mim, quase o mesmo que me provoca o indefectível telefonema do Lira Neto na noite de terça feira lembrando-me o artigo devido na manhã seguinte e que sequer iniciei. Ou a completação de mais um aniversário. Aquela sensação de tempo passante e dever não cumprido – mais um milênio se vai e nada de valia realizamos.

Na Europa, em Paris, um motorista de taxi me apontava orgulhoso, e com discreto porém evidente desdém ante a minha inferioridade sul americana, um angustiante relógio que digitalmente registrava, aos segundos, o tempo de vida que restava ao milênio agonizante. Fui obrigado então a ouvi-lo teorizar sobre quantos reveillons do ano dois mil era possível comemorar, viajando de Concorde em contrário ao fuso horário. Estávamos no terceiro ou quarto, já não lembro, tantas foram as champanhes, lá pras bandas da Nova Caledônia, quando fui salvo pelo fim da corrida.

Não é nada disso porém, leitor, que lhes desejo falar. Desculpem-me o estilo errante. Quero falar é do fato de que a aproximação de fins de séculos, milênios, ou mesmo décadas, e anos até, à falta de coisa melhor, é saudada por listas dos maiores e melhores da década, século, milênio, etc. Muito embora, o que foi de fato significativo, relevante, transformador e permanente em um século só possa ser adequadamente aquilatado lá pela metade do século seguinte, na melhor das hipóteses. Mas, quem pode dar-se ao luxo de esperar tanto para a confecção de tais listas? O mundo arfa de justa impaciência em saudar seus melhores e revistas, magazines e pasquins há que vender.

Assim, a revista Time de algumas semanas atrás, tendo à capa um Einstein deprimido no divã do Dr. Freud, oferecia sua lista. A lista da Time era das maiores mentes do século, lá se dizia. Filósofos, cientistas, inventores, economistas até, que mais influenciaram esse período. Fermi, o químico, Keynes o economista, Piaget, o cientista da inteligência, Hubble, o astrônomo, Fleming, o da penicilina, etc.

Entre eles, Alan Turing, Kurt Gödel e Ludwig Wittgenstein. Pronto, era neles que queria chegar. Quase findo o artigo, e só agora atinjo meu assunto. E porque quero falar deles? Em primeiro lugar porque, ao contrário da maioria dos que aparecem na lista, são relativamente pouco conhecidos da mídia, com a possível exceção de Wittgenstein, tornado pop mais recentemente. Em todo o caso, muito mais que seus nomes, desconhecido é seu trabalho. Não produziram inventos maravilhosos, não revelaram segredos profundos do coração do átomo ou dos confins do universo. Não revolucionaram a economia nem curaram doenças. No entanto, e essa é a verdadeira razão porque tanto lhes queria deles falar, marcaram como ninguém, em suas idéias e com seus trabalhos, aquilo que, considero, veio a ser, no campo do conhecimento, o verdadeiro espírito deste século. Uma marca que se tornará todavia mais clara, creio, à medida que o distanciamento no futuro permitir contemplar toda a extensão da sua influência.

Os três têm em comum o fato de terem estudado, em aspectos diferentes, o mesmo tema: a linguagem. A linguagem em seu caráter mais lógico, abstrato e fundamental. A linguagem entendida em sua estrutura matemática. Essa metafísica matemática da linguagem é o coração da lógica, que dá forma ao pensamento que, por sua vez, é o coração da própria matemática, da filosofia e da ciência (eu sei, há uma circularidade aí, e essa circularidade dará muito o que pensar e falar). A compreensão da essência mais profunda da linguagem é uma façanha desse século. Ela permitiu antever a extensão das coisas que se pode fazer com ela, seus muitos papéis, sua imensa importância e também suas frustrantes limitações. Essa compreensão colocou a linguagem no centro do pensamento neste século. A colocou também, como nunca antes, no centro de nossas vidas.

Coube a Wittgenstein esclarecer o papel da linguagem nas ciências e na filosofia, entender as limitações que o seu inevitável uso impõe à expressão do pensamento e, a partir dessa compreensão, empreender uma crítica radical da filosofia tradicional e à sua reformulação. A Gödel, coube explorar as últimas consequências das limitações que a linguagem impõe à sistematização do conhecimento e à dedução lógica, estabelecendo, no teorema que recebeu seu nome, um dos resultados mais bonitos e importantes do pensamento contemporâneo. Belo em sua surpresa, atordoante na humildade que impõe ao homem que busca o conhecimento.

Finalmente, coube à Turing, antes que qualquer computador em ferro, fios e semicondutores houvesse sido construído, imaginar a máquina computadora ideal, capaz de computar tudo o que jamais pudesse vir a ser computado. Coube-lhe também estabelecer as restrições e os limites que são intrínsecos ao processo de resolver problemas mecanicamente. Coube-lhe, postular, entender e limitar o computador, essa máquina de manipular linguagem, que tanto nos fascina.

Esse foi pois, no meu entendimento, o século da linguagem. Foi, portanto, o século de Turing, Gödel e Wittgenstein.

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